“Esse automatismo, renovado com frequência nas
cadeias, é uma tortura; as pessoas livres não imaginam a extensão do tormento.
Certo há uma razão para nos mexermos desta ou daquela maneira, mas,
desconhecendo o móvel dos nossos atos, andamos à toa, desarvorados. Roubam-nos
completamente a iniciativa, os nossos desejos, os intuitos mais reservados
estão sujeitos a verificação; e forçam-nos a procedimento desarrazoado.
Perdemo-nos em conjeturas”
Graciliano Ramos
em “Memórias do cárcere”
O
ócio, esse delicioso tempo livre para não fazer nada, descansar a mente e o
corpo e aproveitar esse estado de inércia. Como já apontou Domenico De Masi, o ócio é, inclusive, importante na relação do
homem com o trabalho, devendo estar presente para que o indivíduo seja
saudável. Mas e quando se está fadado ao ócio? E quando, mesmo que não se
queira não fazer nada, fazer nada é a única opção? Bem... na prisão é assim. Uma
vez que se chega na prisão, a pessoa que existia ali vai cada dia mais se
desfazendo e se transformando em mais um número; qualquer coisa que remonte à
vida extra-muros vai se apagando: família, amigos, histórias, memórias... uma
vez que tudo que lhe diz respeito não faz mais parte de seu mundo, você passa a
ser ninguém – um ninguém que nada faz, porque a rotina da prisão é sempre a
mesma, e sua liberdade foi podada até o fim. Você come quando mandam, dorme
quando mandam, anda quando mandam e não restam atividades que você possa
realizar por vontade própria.
E
o que fazer com todo esse tempo, com todo esse tédio? Certamente essa questão
passa pelas cabeças de todos que se encontram cumprindo pena privativa de
liberdade. Conforme mostra a pesquisa de Maria
Luzineide Rodrigues, da Universidade Nacional de Brasília, a leitura tem se
mostrado um bom caminho para lidar com a falta de perspectiva dentro da prisão,
além de representar uma possibilidade de resignificar a vida e o sentido de
liberdade. O depoimento de um interno da Penitenciária do Distrito Federal 1
(Papuda) esclarece: “Às vezes, a liberdade é um conceito relativo. Quando
se está lá fora, você pode sentir-se preso ao vício e ao crime. Aqui, com a
leitura, eu tive mais sensação de liberdade”.
E não é por isso que
muitos de nós lemos? Para alcançar essa sensação de uma liberdade tão grande
que admite que se esteja em dois lugares ao mesmo tempo? A leitura é uma
possibilidade de ir além das limitações de nossa vida cotidiana – limitações
essas que, no universo de uma prisão, são ainda mais demarcadas. Conforme
afirma Foucault, o indivíduo que se
encontra encarcerado vira refém do tempo, e a solidão decorrente do afastamento
do convívio social, bem como a expiação da culpa que o obriga a refletir sobre
seus crimes, são fatores que influenciam positivamente a mudança e a reflexão.
Dessa forma, a leitura entra na relação preso-mundo como um adicional que
possibilita essa reflexão, abrindo novos horizontes, novas possibilidades de
compreensão de si e do mundo.
Conforme mostra a pesquisa da UnB
citada acima, é significativo o número de presos que optam por se utilizar da
leitura para passar o tempo. As preferências variam bastante, desde livros
religiosos, como é o caso da Penitenciária do Distrito Federal 1 (Papuda), cujo
livro mais procurado é Ágape, do padre Marcelo Rossi, até clássicos da
literatura como Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, o mais procurado em
Catanduvas. Em Mossoró, é O menino do
pijama listrado, de John Boyne, que
fica em primeiro lugar, enquanto em Campo Grande é Augusto Cury com O futuro da
humanidade.
Sejam livros que tratem da temática
da liberdade, do crime e das dificuldades daqueles que se encontram de uma
maneira ou outra privados de liberdade, como Crime e Castigo e O menino do
pijama listrado, sejam livros religiosos e de auto ajuda que propõe
temáticas mais voltadas para a transcendência ou a superação de dificuldades, a
escolha por esses títulos deixa clara uma coisa: a tentativa de, através da
leitura, refletir sobre seus atos, sua realidade e suas possibilidades futuras.
Diante da rotina prisional que faz do preso um sujeito passivo e despreparado
para sua saída do cárcere, a leitura parece ser uma atividade que devolve ao
sujeito a chance de produzir dentro da cadeia, produção essa que pode ser
interior e reflexiva ou na forma de relatos escritos ou falados sobre suas
experiências no cárcere. A leitura representa a possibilidade de reinserção no
mundo social, de autonomia e de liberdade. A nova relação que o preso tem com o
tempo, onde imperava o ócio, agora abre espaço para a construção de uma nova
identidade social.
[Texto publicado no site Causas Perdidas]