domingo, 4 de maio de 2014

Prisão e ócio: a importância da literatura dentro dos presídios



“Esse automatismo, renovado com frequência nas cadeias, é uma tortura; as pessoas livres não imaginam a extensão do tormento. Certo há uma razão para nos mexermos desta ou daquela maneira, mas, desconhecendo o móvel dos nossos atos, andamos à toa, desarvorados. Roubam-nos completamente a iniciativa, os nossos desejos, os intuitos mais reservados estão sujeitos a verificação; e forçam-nos a procedimento desarrazoado. Perdemo-nos em conjeturas” 
Graciliano Ramos em “Memórias do cárcere”

            O ócio, esse delicioso tempo livre para não fazer nada, descansar a mente e o corpo e aproveitar esse estado de inércia. Como já apontou Domenico De Masi, o ócio é, inclusive, importante na relação do homem com o trabalho, devendo estar presente para que o indivíduo seja saudável. Mas e quando se está fadado ao ócio? E quando, mesmo que não se queira não fazer nada, fazer nada é a única opção? Bem... na prisão é assim. Uma vez que se chega na prisão, a pessoa que existia ali vai cada dia mais se desfazendo e se transformando em mais um número; qualquer coisa que remonte à vida extra-muros vai se apagando: família, amigos, histórias, memórias... uma vez que tudo que lhe diz respeito não faz mais parte de seu mundo, você passa a ser ninguém – um ninguém que nada faz, porque a rotina da prisão é sempre a mesma, e sua liberdade foi podada até o fim. Você come quando mandam, dorme quando mandam, anda quando mandam e não restam atividades que você possa realizar por vontade própria.
            E o que fazer com todo esse tempo, com todo esse tédio? Certamente essa questão passa pelas cabeças de todos que se encontram cumprindo pena privativa de liberdade. Conforme mostra a pesquisa de Maria Luzineide Rodrigues, da Universidade Nacional de Brasília, a leitura tem se mostrado um bom caminho para lidar com a falta de perspectiva dentro da prisão, além de representar uma possibilidade de resignificar a vida e o sentido de liberdade. O depoimento de um interno da Penitenciária do Distrito Federal 1 (Papuda) esclarece: “Às vezes, a liberdade é um conceito relativo. Quando se está lá fora, você pode sentir-se preso ao vício e ao crime. Aqui, com a leitura, eu tive mais sensação de liberdade”.
            E não é por isso que muitos de nós lemos? Para alcançar essa sensação de uma liberdade tão grande que admite que se esteja em dois lugares ao mesmo tempo? A leitura é uma possibilidade de ir além das limitações de nossa vida cotidiana – limitações essas que, no universo de uma prisão, são ainda mais demarcadas. Conforme afirma Foucault, o indivíduo que se encontra encarcerado vira refém do tempo, e a solidão decorrente do afastamento do convívio social, bem como a expiação da culpa que o obriga a refletir sobre seus crimes, são fatores que influenciam positivamente a mudança e a reflexão. Dessa forma, a leitura entra na relação preso-mundo como um adicional que possibilita essa reflexão, abrindo novos horizontes, novas possibilidades de compreensão de si e do mundo.
            Conforme mostra a pesquisa da UnB citada acima, é significativo o número de presos que optam por se utilizar da leitura para passar o tempo. As preferências variam bastante, desde livros religiosos, como é o caso da Penitenciária do Distrito Federal 1 (Papuda), cujo livro mais procurado é Ágape, do padre Marcelo Rossi, até clássicos da literatura como Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, o mais procurado em Catanduvas. Em Mossoró, é O menino do pijama listrado, de John Boyne, que fica em primeiro lugar, enquanto em Campo Grande é Augusto Cury com O futuro da humanidade.
            Sejam livros que tratem da temática da liberdade, do crime e das dificuldades daqueles que se encontram de uma maneira ou outra privados de liberdade, como Crime e Castigo e O menino do pijama listrado, sejam livros religiosos e de auto ajuda que propõe temáticas mais voltadas para a transcendência ou a superação de dificuldades, a escolha por esses títulos deixa clara uma coisa: a tentativa de, através da leitura, refletir sobre seus atos, sua realidade e suas possibilidades futuras. Diante da rotina prisional que faz do preso um sujeito passivo e despreparado para sua saída do cárcere, a leitura parece ser uma atividade que devolve ao sujeito a chance de produzir dentro da cadeia, produção essa que pode ser interior e reflexiva ou na forma de relatos escritos ou falados sobre suas experiências no cárcere. A leitura representa a possibilidade de reinserção no mundo social, de autonomia e de liberdade. A nova relação que o preso tem com o tempo, onde imperava o ócio, agora abre espaço para a construção de uma nova identidade social.

[Texto publicado no site Causas Perdidas]

Prefeitura do RJ vai levar desabrigados da Rio-2016 para área de risco



A prefeitura do Rio, sob gestão de Eduardo Paes (PMDB/RJ), continua a impressionar – e não falo de uma boa impressão. Conhecido por suas ações cheias de segundas intenções, o prefeito anunciou, no final do mês de julho, que irá remover compulsoriamente os moradores da comunidade Vila Autódromo para a construção do Parque Olímpico das Olimpíadas de 2016.
A comunidade está situada na baixada de Jacarepaguá, próximo à Barra da Tijuca, área altamente valorizada da cidade e vislumbrada por grandes empreendedores imobiliários que, com a expulsão dos moradores, poderão lucrar uma quantia significativa com as obras para os jogos olímpicos. As 500 famílias que vivem na área, obviamente, se recusam a sair. Altair Antunes Guimarães, presidente da associação de moradores da Vila, mora na Comunidade desde 1990, e afirma que a maioria das pessoas que residem na área tem título de posse de suas casas emitido pelo Estado, o que significa que moram lá legalmente. Ele afirma que a remoção da comunidade tem como objetivo “valorizar” a área: O prefeito Eduardo Paes é o Robin Hood dos ricos. Quer nos tirar daqui para dar o local para os ricos montarem condomínios de luxo. Somos uma comunidade pacífica e temos direito de morar aqui”, disse em entrevista ao UOL Esportes. A Secretaria Municipal de Habitação rebateu a declaração do presidente da associação, dizendo que está cumprindo ordem judicial e que, após os jogos, a área será transformada em um parque público que poderá ser usufruído pelos ex-moradores e por toda a população, e o local contará com novas linhas de ônibus que estão sendo construídas para as Olimpíadas.
Porém, Paes não está satisfeito em remover uma comunidade do local aonde, por anos, essas pessoas construíram vínculos, famílias e rotinas, ignorando completamente que a moradia não é somente uma área fechada por quatro paredes, mas local de investimento afetivo e de relações. Os moradores serão realocados no Parque Carioca, que fica ao lado da Estrada dos Bandeirantes e, conforme aponta estudo da Geo-Rio (Instituto de Geotécnica do Município), está em área de risco. O local, que contará com 900 apartamentos distribuídos numa área de mais de 80 mil m², está muito próximo à base do Maciço da Pedra Branca, e devido a sua proximidade com a montanha e outras características geológicas, foi classificado no Mapa de Suscetibilidade de Escorregamento do Rio como tendo médio risco de desmoronamento. O projeto tem orçamento de R$81,4 milhões, e está sendo construído dentro do programa Minha Casa Minha Vida.
A Secretaria Municipal de Habitação do Rio afirma ter todos os documentos necessários para que a obra seja executada dentro dos parâmetros legais e, como de praxe, passou a responsabilidade da segurança do local para a Geo-Rio. Marcio Machado, presidente do Instituto, confirmou os dados do Mapa de Suscetibilidade de Escorregamento e disse, também, que apesar do risco de deslizamentos, podem ser feitas obras de contenção que possibilitariam a habitação de forma segura. Ainda de acordo com o presidente, foi exigido que a Prefeitura executasse as obras de contenção; entretanto, até agora não foi vislumbrado nenhum indício de que tal exigência esteja sendo cumprida.
O empurra-empurra da culpa não para por aí. Quando procurado, o Ministério das Cidades, gestor do Minha Casa Minha Vida, disse que no caso do Parque Carioca, a responsável seria a Caixa Econômica Federal – que afirmou em nota que não financia nenhuma obra situada em área de risco e está investigando os fatos relativos à obra em questão.
Mesmo com a pressão da Prefeitura e suas tentativas ilegais de remover uma comunidade que tem direito legal de habitar a área, os moradores estão fortemente organizados e, conforme informações do blog da comunidade, elaboraram o Plano Popular Vila Autódromo, que conta com o auxílio de especialistas para garantir condições adequadas de moradia e urbanização, bem como para zelar pelo direito constitucional de moradia que está sendo ameaçado por interesses econômicos dos grandes empresários que se apoiam na negligência da prefeitura e no oportunismo de Eduardo Paes para garantir seus lucros. Nesse sentido, a denúncia de Altair, o presidente da associação de moradores, parece exata. Eduardo Paes faz de tudo que está ao seu alcance para beneficiar grandes empresários e para “limpar” as áreas ricas da cidade – ainda mais em tempos de JMJ, Copa do Mundo e Olimpíadas. A remoção compulsória por si só já mostra quais as intenções e preocupações reais de Paes. Realocar os moradores em área de risco, sem nenhuma preocupação com a segurança dessas pessoas é a prova cabal do completo descaso que norteia a sua atuação como prefeito. No rol se prioridades da prefeitura, parece não constar a garantia de direitos para a população pobre, que tem que viver dia após dia sabendo que a qualquer hora pode ter que abandonar seu lar.
Uma cidade se faz não só pelas suas praias e atrações turísticas; o que faz uma cidade é, antes de mais nada, seu povo. A cada dia que passa, a cada medida higienista e discriminatória tomada pela prefeitura, a cada acordo sujo que prejudica a população para beneficiar um empresário, o governo elitista de um prefeito que só se interessa por ele mesmo ameaça aquilo que é essencial para fazer do Rio a Cidade Maravilhosa: os cariocas.

Plantando boas ideias: professor cria jardim contra o racismo



Criatividade: a capacidade de produzir algo que seja, ao mesmo tempo, novo e adaptado ao contexto no qual se manifesta. A criatividade é um motor importante para o conhecimento, e quando aliada à boa vontade de alguém, pode dar belos frutos. É o caso do professor de biologia da Escola Municipal Herbert Moses, Zona Norte do Rio, Luiz Henrique Rosa e seu “jardim contra o racismo”.
Percebendo que os alunos utilizavam muitos apelidos racistas e agressivos na escola, ele resolveu, em 2009, fazer uma pesquisa e verificar quais os apelidos que os alunos já tinham ouvido na escola. Para sua surpresa, dos 400 apelidos anotados, 360 tinham cunho racista. Alarmado com a agressividade dos apelidos e com a falta de conhecimento dos alunos sobre a cultura negra e a escravidão, o professor criou o projeto “Qual é a graça?”: o objetivo do projeto é trazer para os alunos, de maneira inovadora, discussões acerca das revoltas de escravos que ocorreram no país, bem como explicitar a violência e a tortura cometidas contra os negros durante o período de escravidão. No muro do jardim abandonado da escola, os alunos escreveram os nomes de quase 200 escravos que participaram da Revolta de Vassouras, em 1838, com o intuito de que cada aluno “apadrinhasse” um escravo, possibilitando, assim, um debate sobre a questão da responsabilidade. Os alunos também cultivaram plantas ligadas à História do Brasil, como canela, noz-moscada e café, que tiveram papel essencial no desenrolar do projeto.
Para que os estudantes tivessem noção do tempo de viagem entre África e Brasil – tempo no qual os escravos sofriam abusos nos porões dos navios, Rosa plantou com eles couve e alface, cujos ciclos são de 90 dias, representando a distância entre Moçambique e Brasil; as viagens entre Angola e Brasil foram representadas pelo acompanhamento dos ciclos de pepinos e mostardas, que duram 60 dias. A fala de um aluno demonstra como o projeto teve seu objetivo alcançado: “Ele ainda tá amarrado, professor?”, perguntou ele, ao cuidar da planta, se referindo ao escravo que sofria nas embarcações. Infelizmente, mesmo com os resultados positivos do projeto na conscientização dos alunos, não houve qualquer tipo de interesse da Secretaria Municipal de Educação em apoia-lo financeiramente. Os mais de R$6.000,00 utilizados até hoje vem de doações de pais, professores, alunos e pessoas da comunidade.
Apesar de o projeto não valer como nota para a matéria, os alunos são incentivados a participar – e participam. Aretha, que aos 12 anos sofria com o preconceito dos apelidos racistas, agora se alegra ao contar que agora a chamam por seu nome. Parece uma pequena mudança, mas não é. Palavras não são só palavras... estão sempre carregadas de afetos, de história, de cultura. São as palavras que nomeiam nosso lugar no mundo, e é através delas que nos relacionamos com os outros, que nos colocamos como sujeitos da nossa própria história.
O preconceito é a face negativa do estereótipo. Estereótipo, por sua vez, é um esquema social próprio das relações humanas, em que a pessoa atribui características a grupos sociais a partir da generalização de observações individuais. Já o primeiro se dá quando o estereótipo é integrado por aspectos puramente negativos. O preconceito surge da tendência que temos de diferenciar o “eu” do “outro”, partindo do pressuposto de que o que parece comigo é bom, e o que é diferente é ruim. Como coloca Aroldo Rodrigues, a maneira que percebemos o outro é influenciada por nossas atitudes, interesses, estereótipos, preconceitos e esquemas sociais. Vemos o mundo através das distorções oriundas de nossas próprias idiossincrasias, por isso é tão importante que haja projetos como o “Qual é a graça?”, que possibilitam uma reorganização da maneira de ver o mundo, de forma a repensar as práticas preconceituosas que estão presentes na nossa maneira de se relacionar. Ao trazer a questão da responsabilidade e das implicações que as palavras têm no outro, o professor Rosa está fazendo um trabalho que não é de biologia ou de história somente, mas principalmente de formação humana, promovendo debates acerca da história de opressão dos negros no mundo e no Brasil, e despertando em seus alunos noções de respeito e justiça tão importantes para o exercício da cidadania.

[Texto publicado no site Causas Perdidas]

Aplicativo “Rastreador de Namorado”, uma coleira digital?

Texto em parceria com Luiz Antonio Ribeiro

Pode ser que seja uma idiossincrasia pessoal, mas uma das maiores e melhores sensações é a de sair sem rumo, se perder pela cidade, ganhar mundo, ultrapassar fronteiras com o sentimento de que a cada limite que se ultrapassa é um pouco mais de liberdade que se ganha. No entanto, se depender de alguns desenvolvedores de software, isso pode estar com os dias contados. O aplicativo lançado para telefones Android possibilita que um celular cadastre um número telefônico que queira rastrear e acompanhe toda a atividade do outro aparelho. Como se isso fosse pouco, além de dar a localização do aparelho, ele também dá acesso ao conteúdo e destinatário de sms e faz uma chamada que permite ouvir o som do ambiente em que está o outro telefone.
            Se antigamente os ciumentos de plantão contratavam detetives particulares para deixa-los a par de todos os passos de seus amados, esse aplicativo permite que cada um seja seu próprio detetive particular. O app se chama “Rastreador de Namorado” e, como o próprio slogan diz, serve para que você rastreie seu namorado caso ache que ele está “aprontando”. Entretanto, não se pode chegar a conclusões precipitadas sobre o aplicativo em si, demonizando-o, sem levar em conta que ele foi criado justamente pela alta demanda das pessoas em saber dos detalhes da vida e da rotina daqueles com quem se relacionam. Até a Justiça tem apontado as controvérsias acerca do caso: embora ela afirme que não há ilegalidade na existência do aplicativo, seu uso sem consentimento pode configurar crime contra a privacidade, dentro das especificidades da “Lei Carolina Dieckman”, em vigor desde abril de 2013, passível de uma pena que vai desde multa até reclusão de quatro anos.
            Devido à polêmica causada pelo aplicativo, a Google resolveu remove-lo de sua loja pela segunda vez, alegando que seu intuito não condizia com os termos de uso da empresa. Porém, o fato de o aplicativo não estar mais disponível para download não significa que não possa haver diversas reflexões acerca do tema. O menos relevante de toda essa situação é dizer se o aplicativo fere ou não a lei. Muito mais importante que isso é pensar o que ele significa como reflexo de uma prática social que já existe e é profundamente incentivada, defendida e debatida nas mais diversas esferas da sociedade. A primeira questão que se levanta está contida no próprio nome do aplicativo – rastreador de namorado – que traz junto consigo a ideia machista de que seria papel exclusivo da mulher ficar em uma posição passiva enquanto o homem sai por aí, além de colocar a mulher como um ser neurótico, ciumento, possessivo. O problema é que essa lógica é difundida diariamente na mídia, nas novelas, nas comédias românticas e histórias de princesas, e o aplicativo é somente mais um desses veículos. Ataca-lo é atacar o sintoma e não a doença. Uma outra questão importante de se observar é que os relacionamentos, quase em sua totalidade, se dão dentro de uma lógica ainda patriarcal e patrimonialista regida pela posse e pelo controle, ou seja, aquilo que o outro faz e até o que ele pensa deve necessariamente ser compatível com o que ou foi acordado entre os parceiros e qualquer desvio desse “pacto” configura traição, desrespeito, mentira. Mais que isso, o outro passa a ser um inimigo, alguém que, se não estiver sob controle, pode (e quer) a todo momento quebrar esse acordo.
Todos esses elementos que claramente ferem a autonomia e o direito a privacidade, impedindo, inclusive, que a pessoa tenha o que se poderia chamar de vida própria, são resultados da supervalorização dos relacionamentos em que se entra numa espécie de temporalidade cíclica e vazia, com poucas projeções e muitos objetivos de curtíssimo prazo.
Não espantaria, a respeito do aplicativo, que alguém dissesse que não vê mal nenhum no aplicativo uma vez que não houve nenhuma proibição, a pessoa foi exatamente aonde ela queria ir; somente está compartilhando comigo onde está, o que está fazendo e com quem está falando. Afinal, um casal não pode ter segredos, não é? O que parece paranoia, muitos chamam de namoro. O que parece cumplicidade, nada mais é que uma coleira digital.
        
 [Texto publicado no site Causas Perdidas]